Entre o ódio e a solidão, os reflexos da cultura incel na juventude
- Julia Ronchi
- 9 de abr.
- 5 min de leitura
Atualizado: 20 de abr.
A série “Adolescência”, da Netflix, discute impactos psicológicos e sociais e alerta sobre o papel da mídia, da família e da sociedade.

O termo Incel (celibatário involuntário) surgiu nos anos 1990, mas se tornou mais conhecido na última década como uma subcultura online de homens que culpam as mulheres e a sociedade por sua falta de sucesso romântico e sexual. Esse grupo, associado a discursos de ódio e misoginia, tem se expandido em grupos na internet, influenciando a visão de jovens e adolescentes sobre relacionamentos, masculinidade e papel social.
A série da Netflix “Adolescência” fala sobre essa comunidade e as consequências que esses homens podem causar às mulheres, com foco na família e como ela pode reproduzir esse movimento. A produção também cita, mesmo que indiretamente, que a falta dos pais na criação dos filhos pode levá-los a procurar conforto em grupos online que estão ligados a discursos de ódio.
A série conta a história de um adolescente de 13 anos que é preso e acusado de matar uma menina da sua escola após rejeitá-lo. A narrativa se passa no Reino Unido e os personagens vão desde a família do garoto até os dois policiais que investigam o caso.
Uma pesquisa realizada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) aponta que há crescimento da cultura incel e antifeminista. Com debates misóginos na mídia, isso pode causar inúmeras consequências para as mulheres e as minorias.
A professora Jéssica Rossi, doutora em Ciências Sociais e Mestre em Comunicação, analisa aspectos da cultura incel e como eles são retratados na série. Leia na entrevista a seguir:

Uau!: Jéssica, como você acha que a cultura incel pode afetar as relações de gênero e o comportamento dos jovens?
Jéssica: A cultura incel, que começou como um espaço para os indivíduos expressarem suas frustrações pessoais com a vida amorosa, evoluiu para uma rede de discursos que, frequentemente, reforçam visões distorcidas sobre relacionamentos e papéis de gênero. Quando jovens, que estão construindo sua identidade e aprendendo a se relacionar com o mundo, entram em contato com essas ideias, eles podem acabar absorvendo uma perspectiva que coloca as mulheres como responsáveis por suas dificuldades, em vez de compreender a complexidade dos relacionamentos humanos. Essa visão pode limitar a capacidade de desenvolver relações baseadas no respeito mútuo e na empatia, levando a comportamentos agressivos ou mesmo de isolamento emocional.
Uau!: De que forma produções audiovisuais podem influenciar a percepção pública sobre o tema? Nesse caso, a série “Adolescência” da Netlifx.
Jéssica: Produções audiovisuais têm um papel muito importante na maneira como construímos nossa visão do mundo. No caso da série Adolescência, da Netflix, podemos observar uma abordagem que traz à tona os dilemas e as inseguranças vividas pelos jovens, como a pressão social, a sensação de exclusão e as dificuldades de se encaixar em padrões pré-estabelecidos. Essa representação permite que o público entenda, de forma mais empática, como fatores como o isolamento e a baixa autoestima podem levar alguns jovens a procurar alternativas, inclusive na internet, para se sentirem ouvidos e pertencentes. Assim, a série atua como um convite para refletir sobre a importância do diálogo, da inclusão e da busca por soluções que promovam o bem-estar emocional, ajudando a combater narrativas extremistas e excludentes.
Uau!: E você acredita que essa comunidade está crescendo em todo o mundo?
Jéssica: O crescimento global da comunidade incel parece estar relacionado a diversas transformações que estamos vivenciando. Em primeiro lugar, vivemos uma época marcada por mudanças rápidas nos papéis de gênero. À medida que as antigas formas de masculinidade são questionadas e novos modelos são propostos, muitos jovens, especialmente homens, podem sentir uma insegurança ou até mesmo uma perda de identidade. Essa sensação de deslocamento e incerteza acaba abrindo espaço para que discursos radicais ofereçam uma narrativa simples: a ideia de que o problema está em outras pessoas ou grupos, como as mulheres ou movimentos que lutam pela igualdade. Assim, fatores como a crise dos modelos tradicionais de masculinidade, o isolamento social e o funcionamento das redes contribuem para que essa comunidade encontre cada vez mais adeptos ao redor do mundo.
Uau!: De que forma esse movimento contribui para a polarização social e a propagação do discurso de ódio?
Jéssica: O movimento incel contribui significativamente para a polarização social ao adotar uma visão “nós contra eles”. Essa perspectiva simplificada divide a sociedade em dois grupos: aqueles que são vistos como vítimas de um sistema que os excluiu e os outros, que são apontados como responsáveis por todos os problemas. Essa divisão facilita o surgimento de sentimentos de hostilidade e ressentimento, pois os membros da comunidade acabam se isolando em um universo onde a única forma de encontrar identidade é por meio do confronto e da crítica aos demais. Em outras palavras, ao simplificar a complexidade dos conflitos sociais e estabelecer inimigos definidos, o movimento torna difícil a construção de pontes de diálogo e a busca por soluções compartilhadas, aprofundando a divisão entre diferentes segmentos da sociedade.
Além dos impactos sociais, os impactos psicológicos também devem ser citados. O Uau! também conversou com a psicóloga comportamental Iasmin Oliveira.

Uau!: Iasmin, como você acredita que a cultura incel afeta a saúde mental e o desenvolvimento social, especialmente dos adolescentes?
Iasmin: Qualquer tipo de cultura que possa vir a pregar ideais mais extremistas pode impactar profundamente a saúde mental e o desenvolvimento social das pessoas. Falando especialmente dos adolescentes, as consequências podem ser muito mais significativas, pois eles estão em uma fase de formação de identidade e valores, o que os torna mais vulneráveis às influências sociais. Com uma possível internalização das ideologias incel, pode-se esperar que haja uma distorção de como enxergam as relações interpessoais, afetando negativamente a autoconfiança e as interações sociais como um todo.
Uau!: E sobre o isolamento social e o consumo de certos conteúdos online, você acredita que influenciam comportamentos extremistas?
Iasmin: O isolamento social combinado com o consumo de conteúdos online pode criar um ambiente propício para a radicalização. As redes sociais, por exemplo, podem funcionar como "bolhas", onde visões extremas, como misoginia, são reforçadas e validadas constantemente. Esse ciclo pode dificultar a reflexão crítica e aumentar o risco de adesão a comportamentos extremistas. As interações sociais e o consumo de conteúdos para além do online são extremamente necessários para o desenvolvimento de um repertório social saudável.
Uau!: E existe um perfil psicológico comum entre os incels?
Iasmin: Embora não haja um perfil único, pode-se identificar algumas características que se repetem com maior frequência. Os incels apresentam características como baixa autoestima, dificuldade em socializar e sentimentos de rejeição. Esses fatores podem ser influenciados por traumas ou outros fatores subjetivos, reforçando comportamentos de isolamento e negatividade.
Uau!: Como a frustração amorosa e a rejeição influenciam a saúde mental dos incels?
Iasmin: A frustração amorosa e a rejeição podem ter um impacto significativo na saúde mental dos incels, frequentemente servindo como gatilhos para a adoção de suas ideologias, culminando no direcionamento da culpa para fatores externos, como mulheres ou a sociedade. Esse mecanismo de defesa pode agravar sentimentos de inadequação e isolamento, além de contribuir para comportamentos autodestrutivos e uma visão distorcida das relações interpessoais.
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